domingo, 25 de setembro de 2011

O Ônfalo

(este texto deverá fazer parte de um estudo que pretendo realizar sobre Ésquilo mas que ainda estou longe de completar)

Em momentos difíceis, nada melhor que um exemplo em que possamos nos identificar, uma imagem para nos dar força nos momentos de indecisão e cujas dores de alguma forma participamos. Caso não exista nenhum exemplo vivo a literatura pode criar um. Essa é a função da literatura e na Íliada Homero nos dá exemplo disso. Ele tenta nos ensinar isso no episódio da embaixada, quando Fênix(personagem criado ad hoc e que não aparece mais), tutor de Aquiles, conta para seu pupilo a própria história dele. Nos referimos a cólera de Meléagro que é, sem tirar nem pôr, a história de Aquiles.

Também na Odisséia o mesmo método é usado, mas com uma diferença sensível. Telêmaco é aconselhado por Atena a mirar o exemplo de Orestes sendo que aquele lutava para encontrar o pai e salvar a mãe dos pretendentes, e este para vingar o pai morto... pela própria mãe. O que há de comum entre as duas histórias? Aparentemente nada, mas deve ser algo bem geral dada a variedade de casos em que é usada, uma espécie de lei. Não vamos fazer aqui uma análise completa da obra de Ésquilo onde o mito de Orestes é contado mas vale ressaltar talvez o simbolismo central. A descida e subida ao Ônfalo.

Após o assassínio materno surgem, advindas das profundezas, as "cadelas da mãe", isto é, as Fúrias ou Erínias. Orestes segue buscando purificação no templo de Apolo em Delfos enquanto é atormentado pelas Fúrias. Ele segue de Micenas à Delfos e depois, por ordem de Apolo, vai à Atenas onde é julgado. Essa peregrinação me parece ser universal e é quase obrigatória nos romances de formação como é o caso da Telemaquéia(parte da Odisséia onde são contados os feitos de Telêmaco). Trata-se no fundo de encontrar o "Eu", o autoconhecimento.

O homem antigo sempre adorou o lugar. Acreditava-o mágico e que com efeito o lugar tem um poder. Hesíodo diz que "o primeiro de todos foi o caos e, logo depois, a terra de largo seio", como se o lugar fosse um princípio das coisas existentes. Todo o rito do Grande Imperador da antiga China se baseava na adoração das quatro direções cardinais e ele próprio era a ligação entre o cima(céu) e baixo(terra). Terra e céu na babilônia também eram divididos pelas direções cardinais: na terra os quadrantes eram preenchidas por cidades do mundo político e no céu pelas constelações. No Egito vários hinos de adoração foram compostos para as direções mas a mais adorada era o eixo norte-sul pois além de ser a divisão política fundamental do Egito é a direção do nilo, isto é, tendo nascente ao sul, na África setentrional e o delta ao norte, no mar Mediterrâneo. Ademais até o vento predominante ajuda neste sentido pois ele vêm de norte para o sul então se se quisesse subir o nilo usava-se vela e, para vir a jusante(usando a corrente do rio), o remo.

Hoje, graças a matematização de nossa cosmovisão pela ciência, cremos as direções arbitrárias e que cima e baixo é mera questão de ponto de vista. Mas ao contrário, para eles o lugar era um absoluto e mais, como princípio, ele, de certa forma, determina as coisas. O fogo é fogo porque tende para cima e a terra é terra porque tende para baixo e não importa o seu ponto de vista. Há uma estrutura cósmica no mundo que determina o acima e o abaixo como lugares primordiais, isto é, o centro e a periferia do mundo(o céu). Dessas duas direções derivam as outras de modo que cada coisa tem seu lugar próprio e que a este tende naturalmente.

Quando a civilização foi criada o homem perdeu a liberdade de se estabelecer em qualquer lugar que quisesse e também a vivência muito mais íntima que este tinha com o universo e com a natureza. Mas para o civilizado o universo pode ser simbolizado de duas maneiras: o templo e o território de sua civilização. Este último tinha que ser uma imagem de todo o kosmos e a prova disto pode ser encontrada em toda a literatura sacra. Há cidades sagradas, montes onde se diriam bem aventuranças, imprecações e até a morada dos deuses. Também os mares significavam alguma coisa para a representação do kosmos recebendo várias denominações. Mas, para que cada cada lugar dentro do território recebesse a designação e interpretação certa era necessária a presença de uma estrutura que desse a direção dos lugares. Me refiro ao centro e a periferia do universo que serão nominados como o ônfalo(centro) e o confim(limites do território).

Ônfalo é uma palavra grega que designa o "umbigo do mundo". Ele é chamado de luminoso porque é por sua descoberta que todos os lugares tem sentido e são organizados para serem a imagem do universo. É por sua luz que conhecemos o lugar próprio de cada coisa, isto é, o lugar a que cada coisa tende. Então para os persas primitivos quanto mais longe de seu ônfalo, piores são as pessoas. Em Israel, o profeta Isaias escreve sobre uma Jerusalem no topo da glória e que emite círculos concêntricos de graça que abençõam todo o mundo. Na Grécia, o Ônfalo é o templo de Apolo em Delfos que é o centro do mundo.

Deixando essa digressão de lado e voltando à Orestéia vemos que as Fúrias representam a auto acusação e a acusação do meio social. Orestes está poluto e sua voz está longe de sua salvação. As Erínies são, em número igual com as vozes interiores acusatórias, elas são múltiplas. Mas Orestes foje e aqui, como observa Apolo, fugir é um ato de coragem. Ele quer dentre todas essas vozes encontrar a sua voz, saber quem é que fala quando a boca se movimenta e quem é que age quando seus membros movem. Ele só tem uma saída: o Ônfalo. Não falamos de uma cidade grega ou do templo de um antigo deus mas da alma do próprio leitor. Tomemos para nós o conselho de Atena para Telêmaco: miremos Orestes. Só a busca do Ônfalo poderá distinguir as vozes acusatórias e os atos falsos de nossa verdadeira voz e de nossas verdadeiras ações. Só assim poderemos distinguir o "Eu" do "não-eu": a sinceridade é conquista de anos.