sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Em defesa das Idéias

A discussão sobre a teoria das Idéias é de importância inegável em toda a história da filosofia, e aqui tomamos uma posição diante dela de maneira mais completa possível. Devo advertir que para mim isso tem sido um verdadeiro deleite e já consigo entrever as consequências na filosofia aristotélica. Os argumentos de Aristóteles contra a teoria, até onde sei, se dividem em duas classes:

a) Provar a incoerência intrínseca da teoria das Idéias;
b) A teoria das Idéias é, em si, desnecessária

Dentro de cada uma dessas classes existem vários argumentos e dou um exemplo de cada uma dessas classes para mostrar até onde ele tinha consciência da profundidade da teoria.

A)Provar a incoerência intrínseca da teoria das Idéias

A.i- Exposição
Aristóteles diz que "Se as formas existem, e se o Animal[Idéia de Animal] encontra-se no homem e no cavalo, então ele (a)será um só e o mesmo quanto ao número OU, (b)será diferente num e noutro". É claro que a resposta é a "A" mas Ar. objeta o seguinte 1- se a Animal(a Idéia) é una como ela estaria no cavalo e no homem e permaneceria una? e por que o animal não é separado de si mesmo? ; 2- Se o Animal(a Idéia) deve participar tanto de bípede e quadrupede como pode ele ser determinado e uno com atributos opostos?(um animal ao mesmo tempo bípede e quadrúpede).

A.ii- Unidade da Idéia, matéria inteligível
A maioria das pessoas não entende o caráter unitário da Idéia platônica, geralmente a confundindo com um conceito ou então indentificando-a com a forma. No entanto prefiro escutar o velho Platão e afirmar que a Idéia também é feita de Matéria + Forma.O próprio Aristóteles diz que há uma materia inteligível e uma initeligível: "Existe uma matéria sensível e uma inteligível: a sensível é, por exemplo, o bronze, a madeira ou tudo o que é suscetível de movimento; a inteligível é, ao contrário, a que está presente nos sensíveis, não enquanto sensíveis mas como entes matemáticos"(Met. Z 10, 1036 A 9-12). E ainda nos textos Met. H 6, 1045 a 33-35 e Met. K 1, 1059 b 14-21.

No texto está escrito que as duas matérias estão nos sensíveis mas temos aí uma deformação na doutrina platônica. Reale nos diz sobre o texto supra citado: "Aqui recordamos, particularmente, a destacada dificuldade que Ar. demonstra ante a 'matéria inteligível', justamente no que concerne a explicação dos entes matemáticos, as suas notáveis incertezas e as suas notáveis incertezas e as suas tendências a admiti-la embora a seu modo". Isto é, a confusão de Aristóteles de atribuir duas matérias a uma forma é na verdade um resquício de uma doutrina herdada do Platão. Nessa doutrina uma forma corresponde a uma matéria, ou seja, os entes sensíveis tem uma forma e uma matéria e os entes ideais também tem uma forma e uma matéria.

Então se assume que os sensíveis tem como matéria aquela substância amorfa e initeligível e como forma as próprias Idéias enquanto que as Idéias tem por sua vez uma matéria inteligível que se identifica com certos entes matemáticos e uma forma que é a própria Idéia de Bem. Mas o que é número? segundo o próprio Aristóteles número é "o que é divisível em partes indivisíveis". Se trata de uma estrutura de certos conjuntos de unidades como "um par", "uma díade", "uma tríade" etc.... Um número é sobretudo uma estrutura, um agrupamento. Tomemos então uma Idéia como Música, ora, a música é harmonia, melodia e ritmo. Isto é a música é feita por partes indivisas, ela é um número e do mesmo modo todas as Idéias são assim. Tanto que método platônico mais famoso é o da divisão ou o das espécies indivisas.

A.iii- Defesa da teoria das Idéias
Dito isso voltamos ao argumento e veremos o seguinte, para refutar uma tese temos que aceitar a tese tal qual o opositor disse e ver se daí geram-se absurdos como no caso do Reductio ad absurdum e é o que mais ou menos Aristóteles tenta fazer não fosse pelo seguinte: ele cria para si um Platão para refutar. Sim, estou dizendo que Aristóteles está sendo desonesto. Isto é, ele teria que aceitar o argumento de Platão tal qual Platão disse, mas é justamente o que ele não faz. Especificamente tanto o argumento aristotélico supracitado 1 como o 2 se baseiam na premissa que Platão considerava as Idéias do seguinte modo descrito em Met., B-12, 997 b 5-12: "Com efeito, os Deuses que eles[os vulgos] admitem não são mais do que homens eternos, enquanto as Formas que eles[Platônicos] afirmam não são mais do que sensíveis eternos".

Isso é não compreender a teoria de Platão porque, como eu disse, as Idéias não são sensíveis pois tem matéria e forma diferentes. Os sensíveis tem como forma a Idéia e tem como matéria a matéria initeligível(descrever a matéria initeligível e sua initeligibilidade também daria um trabalhão!), ao passo que as Idéias tem, para Platão, como forma o Uno e como matéria os tais entes matemáticos(números intermediários). O argumento de Aristóteles é inválido pois ele não toma a Idéia platônica tal qual o Platâo disse mas tal qual ele quis que a tese parecesse. Isso não só acontece na Metafísica como na física tal como está escrito no número 4 e 5 de nosso anexo espertezas aristotélicas.

A refutação deste trecho é também e mais compactamente dada por nosso Mário na Introdução de sua tradução do De generatione et corruptione: "Estas digressões mais comezinhas a dialectica platônica que a aristotelica, levar-nos-iam a afirmacão de que um ser que atingisse a perfeição da forma essencial do eidos platônico, por exemplo, ou do arithmós pleithos (o numero de conjunto) pitagorico, seria materialmente inalcançável. No segundo caso, seria incompreensível porque o número da harmornia pitagorica, os arithmoi harmonikoi são sempre indefinidos, portanto nunca alcançáveis materialmente, na sua perfeição extensista e definiVamente acabada como a relação entre o diâmetro e a circunferência ou a hipotenusa e o quadrado, dão sempre um número indefinido. A forma essencial na ordem ontológica é perfeita e jamais alcançada pela materialidade, que dela pode potencialmente aproximar-se sempre, como o numero de ouro pitagórico, que jamais alcança um termo finito."

Ademais, além do caso citado(aqui me baseio em Reale), Aristóteles faz várias reduções confundindo Idéia, Idéia-número, numeros ideais e número. Reale ainda diz: "... e sobretudo para compreender as reduções sistemáticas a que ele[Aristóteles] submete a essa doutrina[teoria das Idéias], justamente para poder refutá-la com facilidade".

B)A teoria das Idéias é, em si, desnecessária

O tópico A é um desdobramento do argumento principal do meu último texto que ficou mal escrito(também exclui posteriores desenvolvimentos dele), mas aqui me ocorreu uma nova forma de defesa. No texto anterior a defesa consistia na reexposição do mecanismo de relacionamento Idéia-sensíveis de modo a tornar o argumento do terceiro homem inutilizável. Agora me parece claro o seguinte: a noção que Aristóteles tem da Idéia é a de que "as Formas que eles[Platônicos] afirmam não são mais do que sensíveis eternos", isto é, tal qual descrito no número 7 do anexo espertezas aristotélicas, as Idéias segundo Ar. são entidades físicas duplicadas. Ora, não é esse de modo algum o modo que Platão acreditava serem suas Idéias de modo que o argumento de Ar. é invalidado desde as bases. De qualquer modo desde o diálogo Parmênides de Platão que sabemos ser o argumento do terceiro homem conhecido pelo mestre ateniense o que mais uma vez prova a superioridade da concepção platônica ante o argumento antes mesmo de Aristóteles o criar(v. notas sobre O que NÃO é uma idéia, n°4)

ANEXO - Espertezas aristotélicas

São basicamente alguns testemunhos de abalizados tradutores e comentadores do estagirita mostrando eventuais deformações e reduções de outros pensadores (especialmente de Platão) para que se pudessem ressaltar qualidades da filosofia aristotélica. Simplesmente não o julgo, sou eternamente grato pela filosofia que ele criou.

1- "É a Amizade que os une, enquanto esta domina, separando-se, porém,
quando o ódio domina. A espera de Empédocles é eterna e
imutável, e a crítica que Aristóteles lhe fêz, neste parágrafo,
é TENDENCIOSA para Joachim, e com razão, pois todo o processo
do mundo se verifica segundo um ciclo imutável, dentro
dessa espera imóvel."
Mário ferreira dos Santos in Aristóteles e as mutações

2- "Mas é preciso considerar (o que não o fêz Aristóteles),
que os poros não são vazios para Empédocles, e sim cheios.
Dai todo argumento de Ar. ser improcedente, o qual pode
ser lido no texto."
Mário ferreira dos Santos in Aristóteles e as mutações

3- "La crítica del infinito como continente y delimitante parece dirigida contra Platón. Aunque en Met. 987b18-22 se dice que para Platón el Infinito es lo Grande y lo Pequeño como materia, la cual recibe del Uno su delimitación, pero no que el Infinito fuese lo que contiene (periéchein) y delimita (horízein). Para ápeiros en Platón véase Parm. 143a-145a, 158d-e;Fil. 16c, 27b."
Guilhermo R. de Echandía nas notas ao tratado da física de Aristóteles publicado pela Gredos

4- "Lo que parece injustificado es afirmar que Platón identificó chôra con hýle. Si se la entendiese como «materia inteligible» habría cierta equivalencia, como indica Hussey, pero sería algo enteramente distinto de la «materia» aristotélica, pues la hypodoché del Timeo parece una entidad independiente de los cuerpos."
Guilhermo R. de Echandía nas notas ao tratado da física de Aristóteles publicado pela Gredos

5- "Ahora se afirma que para Platón tò methektikón (= tò metalêptikón de b14) es el «receptáculo» (hypodochê) de las Ideas y los Números. Pero Platón nunca habla de la hypodochê como recibiendo las Ideas, sino como la phýsis que recibe todos los cuerpos (Tim. 50b6). Por tanto, la objeción que se le hace a Platón no tiene sentido. La hypodochê no es un hypokeí-menon. Aristóteles parece proyectar una vez más sobre Platón su propia concepción de la materia."
Guilhermo R. de Echandía nas notas ao tratado da física de Aristóteles publicado pela Gredos

6- "As teorias platônicas que Aristóteles tende de modo mais desconcertante a 'deformar' são as Idéias e princípios primeiros"
Giovanni Reale no volume introdutório do metafísica

7- "a teoria das Idéias é apresentada, a nosso ver da maneira mais decepcionante, porque Aristóteles, interpretando as Idéias como indevidas hipóstases dos universais, tende a 'dar-lhes um caráter físico' e, portanto, a fazer com que se a entenda como duplicação das coisas"
Giovanni Reale no volume introdutório do metafísica