terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Ensaio sobre O Duplo - Dostoiewski

Terminei meu primeiro Dostoiewski e a leitura me pareceu maravilhosa. Tive mesmo vontade de lê-los todos ali, naquele instante. Mas isso seria palavrório vazio se não explicasse bem o caso. Comprei "o Duplo" recomendado pelo fer durante uma visita à Curitiba e trouxe para ler no navio e, ao final, senti aquela impressão somente causada pelo contato com literatura imaginativa. De início é um desconforto e, logo depois, uma vontade de entrar naquele mundo recém conhecido - aquela vontade da segunda frase. Ao final da leitura, me senti confuso, ofendido, desafiado em minha honra: eu tinha de dar uma resposta àquilo. Eu tinha um dever.

Contra mim pesa a inexperiência em literaturas que tem forte elemento psicológico. Não são minha praia. Prefiro as "literaturas pragmáticas" onde o elemento simbólico pesa mais que o alegórico e se tira com muito mais facilidade e precisão uma "lógica simbólica". Mas onde se pode efetivamente distinguir o alegórico do simbólico em um autor moderno? Mas não posso entender isso como uma justificativa e embora não preparado(o que requer, pelo menos, a leitura das obras completas), posso esboçar, a partir de meus atuais conhecimentos, um modo de entender a obra que, para fins de comparação quando ler as obras toda completas, me permita entender a contribuição do autor senão na literatura universal pelo menos na minha visão de literatura.

Problemas

Como meio interpretativo resolvi pensar em problemas que podem ser resolvidos, posto que não posso dar uma interpretação de conjunto. São todos, portanto, problemas que me vieram a mente e não, por assim dizer, uma descoberta de chave de abóboda interpretativa:

I- A cena do último baile me parece não ter lugar na realidade dos personagens, senão na do senhor Golyádkin, e, além disso, iverídica também parece ser a primeira aparição do duplo. Lembremos, no entanto, quando da aparição no trabalho que todos asseguraram a existência física do Golyádkin segundo. Onde começa e onde termina a realidade nessa história "absolutamente verídica"?

II- Qual é a função do duplo na história? E qual seu valor explicativo para que esta história seja, nas palavras do autor, "absolutamente verídica"?

III- No apêndice da edição da 34, Paulo Bezerra, diz ter sido a "falta de responsabilidade ética por suas palavras" durante a confissão com o duplo, a causa da ruína e por fim loucura de nosso herói. Honestamente, quem consegue ter essa responsabilidade em alto nível é, para mim, alguém de invejável grandeza moral. Quero dizer que ao expressarmos valores éticos estamos sempre de alguma forma sendo utópicos. Terá Dostoiewski nos passando uma lição de moral com seu livro? Qual a causa da loucura do senhor Golyádkin primeiro?

IV- É acima de qualquer dúvida que Golyádkin teve o fim trágico por não ter cumprido a ordem médica de "não se furtar a uma vida alegre; frequentar espetáculos e clubes e em todo o caso não ser inimigo da garrafa". Qual a dimensão desta sentença?

Uma explicação literária deveria ser capaz de explicar não só o todo mas também os episódios individuais e de harmonizá-los. Isso me parece fora de cogitação e a resposta aos problemas terá como resultado o alivio de minha estupefação ante essas aventuras, "a seu modo curiosas". Minhas explicações tiveram, no entanto, a feliz surpresa de descobrir o "Leitmotiv" destas aventuras, a saber, o duplo. Está de bom tamanho para um iniciante.

Golyádkin na Grécia arcaica

Se me permito uma volta à Grécia arcaica não é tanto por pensar que Dostoiewski estava pensando nisso, pois, me é claro que não, já que ele tinha em mente estudos psicológicos e de doenças mentais obtidos por fontes que são desconhecidas para mim(v. edição da 34). Faço o desvio pela Grécia por limitações pessoais já expostas e por saber ser o 'duplo' uma, nas palavras de Vernant, "categoria psicológica". A exposição seguinte tem por base o artigo de Vernant, "Figuração do invisível e categoria psicológica do duplo: o Kolossós", sobre psicologia histórica.

Foram encontradas em tumbas gregas vazias certas figuras esculpidas em forma de cubo com um apêndice que lembra um rosto masculino ou feminino. Esta mesma figura por vezes, aponta a pesquisa, era encontrada em áreas selvagens ou desérticas deseterrada. A escultura aludida se chama kolossós. É que os gregos acreditvam que na tumba ainda persistia a alma do morto em estado de repouso(donde, aliás, a expressão "descanse em paz") e que quando o morto não era enterrado propriamente(lembram o episódio de Antigona?) o referido defunto atormentava os vivos. Pois bem, quando o corpo era desaparecido se enterrava o kolosso ou o deixavam em lugar onde não pudesse fazer mal. O kolossós era, tal qual o corpo inanimado, o "duplo" do vivo.

Podemos chegar a conclusão de que o kolossós não é a imagem do vivo mas, por assim dizer, de sua vida no além; também tem a mesma função a psyché. Não entendamos essa expressão do modo que Platão e os cristãos a entendem mas no modo que Homero a entendia, como "sombra" no Hades. O kolosso e a psyquê são fenômenos da mesma instância, estão sob o mesmo signo que tem de estar por sua vez inserido num quadro de referência muito determinado. o Kolossós e a psiché entram para os gregos na mesma categoria que a aparição, a figura onírica e até estátuas sacras(o que explica o fato de os gregos, mestres das artes plásticas, não terem nome para estátua). Eles estão na categoria do duplo.

O duplo e "O Duplo"

A definição de duplo, que é o cerne de nossa interpretação da obra, é dada por Vernant da seguinte forma: "O duplo é uma coisa bem diferente da imagem. Não é um objeto "natural", mas não é um produto mental. O duplo é uma realidade exterior ao sujeito, mas que, em sua própria aparência, opõe-se pelo caráter insólito aos objetos familiares, ao cenário comum da vida. Move-se em dois planos ao mesmo tempo contrastados: no momento em que se mostra presente, revela-se como não pertencendo a este mundo, mas a um mundo inacessível" O kolossós realiza, na medida em que é um duplo, uma ligação do mundo dos mortos com os vivos; é como que a presença do outro mundo nesse mundo sob o sol.

Os senhores poderão se perguntar o porquê essa explicação tão distante de nosso mundo pós-cristão, pós-moderno, pós-pós-moderno etc, mas é que como categoria psicológica o duplo está mais perto de nós do que se pode suspeitar. Não como ponte entre o mundo divino ou infernal com o nosso mas entre mundos muito mais humanos. Por exemplo, estereótipos entram na mesma classificação. Longe de atrapalhar a comunicação, eles servem de ponte para as individualidades. O estereótipo se conhece de antemão, por exemplo, os gostos do povo alemão, e, ao compará-los com uma pessoa de verdade, se ultrapassa a barreira de cultura nacional para entrar efetivamente nas idiossincrasias individuais. O gringo comedor de chucrute é o duplo de uma pessoa real e verdadeira.

Colocando a questão dessa forma fica muito mais fácil decifrar o caso do nosso romance: o duplo é a tentativa de superar a subjetividade do sr. Golyádkin e o fracasso desta é a causa da loucura dele. Esta é minha tese. Mas objeções podem ser feitas; se nos perguntarmos sobre a causa da origem de uma alma tão hermeticamente fechada a ponto de se tornar incomunicável poderíamos tomar em consideração as observações de Voegelin sobre a segunda realidade. Contudo, se olharmos mais de perto veremos que a coisa se passa de modo um pouco diferente; Golyádkin não tem nada sequer comparável a furia demoníaca de um Raskólnikov ou com a ingenuidade anacrônica de um D. Quixote. Se é assim, como um sujeito tão medíocre pode ter uma história tão excêntrica?

Com efeito, Golyadkin é um burocrata de mente pequeno burquesa e, não fossem os cacoetes de escritório, nada o diferenciaria de um avaro e rabugento feirante. Não há entre ele e o resto dos personagens qualquer disparidade de poder, grandeza de alma ou ambição. Ele só sabe repetir poucas frases feitas, todas elas lugares comuns de seu próprio meio social. Golyádkin é um estereótipo encarnado. Tendo caracterizado nosso herói deste modo, podemos dar uma resposta à objeção sob a forma de um quadro geral dos episódios:

1- A rejeição do Sr. Olsufi Ivánovitch, patrono de Golyádkin, implica a exclusão social de nosso herói. Homens "comuns", estereotípicos como o sr. Golyadkin, são definidos pelo meio em que vivem(se quer mudar as idéias de um medíocre, troque-o de lugar"), pela sua função. Com a exclusão, ele entra em contato com a realidade e tem que viver "em si e por si", coisa de que é incapaz e, por despreparo, incorpora uma atitude de fechamento para a realidade, a "solidão" existencial.

2- No consultório de Créstian, ele é confrontado com essa "solidão" e entra em desespero. Ele tenta de verdade tenta seguir o conselho da "mudança radical de vida", de "não se furtar a uma vida alegre", afinal de contas, ele vai para um baile. O modo de acabar com ela é que é curioso, ele não tenta se abrir à realidade e superar o seu meio achando novas saidas, ao contrário, tenta forçar a barra no sentido material aparecendo sem ser convidado no baile. O resultado é o duplo e seu fracasso. Chamamos atenção aqui para a primeira aparição do duplo ainda sob a consciência de Golyadkin; em todo o livro vemos o duplo sob os olhos do personagem principal, aqui temos uma amostra do modo de operação dele.

3- A exclusão do baile é a segunda e definitiva exclusão da comunidade. O resto do livro é um progressivo afastamento que culminará na completa privação de convivência humana.

4- A conversa entre os dois Golyadkins também nos é essencial. Golyádkin primeiro em sua maior demonstração de humanidade, "programa" o duplo como a uma máquina; este tem o papel de absorver tudo. Golyádkin se comove e o abraça, é sua última chance de comunicação com o mundo. Já sabemos porque vai dar errado, mesmo que a sociedade o abrace novamente(o que, de fato, acontece), por ter tido um pouco de contato com a realidade, ele não se entregará de verdade à sociedade; oscilará entre cinismo e a despeito.

5- Cinismo e despeito, é nessa tensão que se dá a narrativa, entre o duplo e o primo. A chave de interpretação está no que Golyádkin considera como sua tábua de salvação para sair da miséria em que se encontra; ele, com efeito, diz que vencerá seus inimigos usando "artimanhas". Artimanha, esperteza ou malícia se dizem em grego methis que também é uma deusa. A deusa da malícia(Methis) teve dois filhos, Prometeu e Epimeteu, que significam respectivamente, "o que sabe antes" e "o que sabe depois". Eles são duplos e unos, ambíguos como são os deuses, mostram que usar a malícia para enganar a ordem(inteligencia de Zeus) tem dois lados e nunca a empresa é bem sucedida. A dupla Prometeu/Epimeteu corresponde a dupla Golyádkin segundo/primeiro; a troco de voltar a uma sociedade fútil, por meio de um duplo ele sacrifica as ligações reais: a alemã que lhe servia comida, o amigo que lhe emprestou dinheiro, o criado que lhe ajudava.

6-Por fim a tensão cinismo/despeito fica insuportável e a vitória social do duplo é o seu fracasso funcional e existencial. Golyádkin enlouquece.

Conclusão

A maioria dos problemas propostos deve ter ficado clara e só queria reforçar o ponto de que não foi propriamente a "falta de responsabilidade ética por suas palavras" que causou a loucura mas a tensão insuportável entre o cinismo e despeito causada pelo fechamento à realidade. Também nos cabe elogiar o artifício poético do duplo. Separar a categoria da imagem da do duplo por um personagem e uma realidade nunca totalmente presentes e nunca totalmente ausentes é genial; O duplo, como o kolossós, nem está totalmente dentro da realidade nem totalmente fora. Talvez seja essa presença do ausente o que mais chama atenção nessa grande obra de arte.