quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Prefácio por José Perez dos Comentários à guerra Gálica


Com a reedição, agora, entre os famosos livros definitivos da humanidade, na série d“Os Mestres do Pensamento”, desta proverbial versão brasileira de Francisco Sotero dos Reis dos “Comentários à Guerra da Galia” — Commentarii de bello gallico — de Cesar, damos em cheio com um clássico dos pés à cabeça. Um inquestionável clássico que dois mil anos sagraram numa acrisolada admiração histórica e literária, arrolando-o, assim, entre os rarecentes escritores de todos os tempos libertos “à lei da morte” formulada, em famoso verso, por aquele que também pelo seu gênio portentoso a ela se forrou, Camões. Não para estes heróis, — heróis, muito mais do que Hitler com as suas vitórias devastadoras — evidente, o amargor pessimista que escorre dos versos do florentino que se lhes irmanou na glória:

          É nossa fama qual matiz da planta,
          que pouco dura, e o próprio sol desbota.
          que a faz brotar da terra ingrata e dura.
          (Dante — Purg. Cap. XI, trad. de Vila da Barra)

          E já que também é, por inteiro, aproveitável, o prefácio de Sotero dos Reis para a edição de 1863 da sua preclara translação, e em cuja se plasmou perfeita síntese da silhueta de multivariadas facetas do imortal romano, nele, outrosim, se detendo a lhe mensurar o alcance da obra literária convergida para estes Comentários, então, em contrário ao que vimos até agora fazendo, de dar, em páginas prolegomenares, uma súmula do homem e da obra, pelas aludidas razões, não o fazemos nesta, aproveitando, entanto, este local, para uma falação breve sobre o título que o encima — assunto ao qual já temos dedicado alguma meditação.
          Muito te hás de surprezar, leitor, se souberes que destas reedições clássicas se incumbiram sujeitos ainda mal entrados em sua madurez e que se alistaram, não faz muitos anos, numa série de rebeldias de toda ordem, anárquicas e desconjuntadoras, e cujo fito era, sempre, a sistemática e permanente oposição a tudo o que fosse passado, e, necessariamente, em arte, literatura e pensamento, àquilo que leva o nome de clássico. Levantaram-se contra isso e contra aquilo, somente porque rescendia a passado e a antigo numa fúria de iconoclastas, eis que os contaminara o morbus do investir e do desarticular. Borrascosamente irritabunda e demolitória, a triste geração do após 14 e que se funde, agora, no chão de brasas do Apocalipse de Hitler, acossada no mais íntimo da sua rede nervosa, revelou-se de uma turbulência irremovível que fê-la, às loucas, atirar-se contra todo o estabelecido e consagrado o mesmo é dizer-se que fê-la dar de cabeça ao muro... só que o muro ficou intacto — sorriria, se pudesse — e a cabeça ficou a lascas e a cacos o seu conteúdo. E agora nós, pobres homens modernos, sacrificados pela estupidez de uma velha mentalidade de ódios cegos que 1evou a humanidade ao braseiro, vesânica mentalidade que ao invés de intibiar após tantos anos de soprar virulento, como que mais se enturgece e ensancha ao cabo do mundo e aos extremos da vida, verificamos que da bulha insolente com que nos atrevemos contra tudo, querendo — aqui se enquadra o meu evangelho, o meu Quixote — “hacer nuevo mundo” — “no quieras hacer nuevo mundo” num lance de lucidez dizia a Sancho o bom do cavaleiro - não o fizemos de novo e esperdiçamos o tempo a investir o velho que... o vento não levou... O novo que construimos, esse, tão frágil era que, à nascença, já o vento levou... É que para construir algo de duradouro há-se de fazê-lo sobre o chão batido pelo esforço das velhas gerações a que, apenas, as subseguintes, levam o contributo do seu para enriquecê-lo... Não se deve, justo, dormir sobre o passado como um quichua... contemplando-o, imoto, como aquele corvo, “triste e só”, do poeta, à beira da corrente, e virando estátua com ele, aceitá-lo sem o acréscimo das gerações e da vida... Mas, também, renegá-lo por uma eliminação sem mais nem mais, é torpeza ou grandeza tamanha que só se compreenderia na onipotência de um bíblico demiurgo, capaz de tudo reduzir a nada e do nada tudo recompor.
          Refletimos a alucinada decomposição do tempo. É esta a desculpa que lhe encontra ao baixo nível mental dos nossos dias. A fúria das iconoclastias bélicas determinou o desalento e a intranqüilidade que esterilizou e impossibilitou uma produção boa, segura e sistemática. Nunca o homem percorreu dias tão agitados, sobre um tablado instável, como aquelas escadas movediças que se inventou para não se fazer o esforço natural de subir meia dúzia de degraus... Mas, um desgaste maior de energia nervosa faz-se, ascendendo sobre o fugidio de uma escada a correr sob pés que só devem andar... A imagem, rápida, apressada e desnaturada da nossa vida se fixou, a meu juízo, nessas falsas escadas... E com tal impulso, como havíamos de bem produzir? Tudo vai de corrida, e logo nos cansamos, e caímos esfalfados... E se ainda voa sobre as nossas cabeças a ameaça permanente da destruição?!...
          Sobre a nossa geração desabou a tormenta de duas guerras mundiais, a uma das quais assistimos em atitude de estupor; centenas de outras, aparentemente locais, mas, de verdade, furos de uma generalizada gangrena, ponteando, num giro universal da geografia política, da China ao Chaco, dos Balcãs a Marrocos; tumores revolucionários que abriram em chagas desumanas da Rússia à América sulina convulsionada a caudilhismos endêmicos.
          Nunca faltou tanto a uma geração intelectual como à nossa, os dois plintos basilares sobre os quais se ergue a verdadeira cultura: a faculdade de investigar e a faculdade de meditar. Talvez ela tenha lido e mesmo lido muito, demais até, porém ineficazmente. Porque só leitura, sem calma, sem reflexão, sem observação, sem meditação, leitura apressada e perfuntória, não dá cultura... Esta, provém do estudo e até mesmo da pouca leitura - pauca sed bona — mas profundamente meditada. A grande sabedoria dos orientais, a dos chins, dos hindus, dos judeus, dos árabes, a profundidade de Descartes e de Spinoza — este dizia que “a filosofia é a meditação da vida” — promanaram mais do seu poder de meditação do que das suas meras e fáceis faculdades de ler. Olvidou-se a investigação das coisas naturais por meios naturais, e, apenas, em ciência, — coisa do nosso tempo — com uma aparelhagem complicada que esmaga o pensamento, tem-se investigado artificialmente. O grande aparelho de investigar e refletir — o cérebro — substituido por métodos mecânicos, parece que se vai embotando. Maldição dos inventos! Os produtos mecânicos do pensamento e das mãos, estão matando as mãos e o pensamento. Carell se alarma com o embotamento mental do homem contemporâneo.
          Sobre um chão de tanta pressa e rapidez, como teríamos o tempo necessário para um cultivo perfeito do espírito? Cultivamos, sim, os males eufóricos e nos consumimos nas aras das coisas apressadas, como se o mundo se fosse a acabar... Triste geração de angústia, moldeada no cadinho de um mundo agônico: ossos despedaçados, carnes dilaceradas, alma em estilhas!
          E não fomos nós que ateamos o braseiro a crepitar. Mas somos nós a expiação imbele e inocente das suas aras em fusão. Vai-se-nos a vida na pressa, sem tempo de conformar coisas que só com o tempo se assentam e ao madurarmos para a vida já vamos sentindo a inanidade dos nossos ideais. Pouco fizemos, se pouco é o nos havermos sacrificado e imolado à sanha dos ódios... dos outros... Somos uma geração sacrificada ao tumulto das iras e a nossa produção é seca e pêca. Assolados por uma infrene anarquia de prós e contra, de reformas e contra-reformas, que se precipitaram umas sobre outras, como cabeços de vagas, fomos mal educados e pior instruidos. No Brasil, as reformas da instrução pública, sempre experimentais e às cegas, nos fizeram de cobaia e nos tornaram exangues e quase inanidos. Somos uma geração que mirrou no berçário. Mal instruida, pensa mal e mal se expressa. É que os seus guias lhe inocularam o mal de tudo isso, que a sua ignorância catedralesca pompeava sem escrúpulo. Um jardim de infância ainda em experiência, um curso primário em eterna elaboração, um curso liceal reformado a cada passo, um curso superior sem bases firmes, sem preparação séria, uma vida intelectual leviana, fácil, facílima, com uns exemplos intelectuais sem cultura, modelos de trapaça e de embuste, sacrificaram as bases culturais da geração.
          É de uso trivial a frase de que é esta uma geração de ignorantes. Não há de ser tanto. Deveria, isso sim, sê-lo pior do que é, dados os motivos que lhe reduziram as possibilidades mentais de estudo e meditação. Muito há de ficar devendo a nossa desgraça à estupidez política e à bruta estulticie dos que abriram a picada aos seus passos iniciais.
          Mas, pior do que a atualidade, é o futuro sem esperanças. Porque, ao menos, a esta geração, coube-lhe a glória —?— do sacrifício. Mas para os que vêm, ainda não se abre a esteira das boas espectativas reabilitatórias. Houve um momento, depois de 14, em que ideais com eiva de boa fé, abriram à vida a fulgência dos grandes clarões. E parecia que, polarizada a dispersão dos homens descongregados pelo caos de uma burguesia em decomposição, os galvanizaria em novos entusiasmos. Mas logo se viu que nos sucessores dos grandes líderes daqueles momentos culminantes, rebrotavam os vícios que se procurava derruir. O fascismo, por sua parte, nunca constituiu um ideal, a não ser, especialmente na Alemanha, o ideal do desforço e da vingança, que conseguiu renuclear um povo para reproduzir outra catástrofe de conseqüências imprevisíveis. Formou-se, de novo, o vácuo e resurgiram as grandes ânsias, as decepções cruéis, as desilusões incicatrizáveis. Aos que dizem que nada sabemos, havemos de responder que já muito sabemos, eis que sabemos com certeza que fomos duramente defraudados e imolados...
          Entanto, — especialmente antes de se desencadear a atual guerra — afigurava-se que para esta geração que agora passa, ainda esvoaçava alguma leve esperança. A visão da nossa triste realidade, talvez ainda nos pudesse salvar. Àqueles que a têm diante dos olhos desorbitados à contemplação da trágica paisagem, cumpre uma atitude tranqüila e honrada, intrépida e impávida, para reconhecer os erros e as falhas, os defeitos sanáveis, curando de os remediar sem desânimo. Façamos, então, o esforço tentacular da renovação... A geração dos trinta anos que passa, na acerbidade mesma da sua agonia, deve dar um passo atrás, tentar um exame de consciência implacável, fundamente austero e estóico, refluir a uma observação introspectiva severa, com os olhos também para a vida, e voltar aos fundamentos, reconstruindo-se a si própria. Visada de frente a realidade e conhecido o destroncamento de todos os conceitos e a desarticulação de todas as bases, tratemos de adaptar-nos às novas contingências. O poder de adaptação humana é muito maior do que em geral se acredita. Não nos demovam as dificuldades. Principalmente aos homens de clara inteligência, incumbe essa função. Um homem formidável dos nosos dias, que exorbitou de todas as craveiras da medição humana, define o homem inteligente como sendo “aquele que sobre a ponta de um prego é capaz não só de adaptar-se como de tirar partido dessa incômoda situação”. Estamos, de fato, sobre a incômoda ponta do prego. Vejamos, agora, já que não temos outro remédio, como nos havemos de amoldar o melhor possível.
          E para começar, impõe-se uma volta ao passado, jamais para o imitar, jamais para o reerguer e nele nos modelarmos, mas, como quem carece de alicerces, para conhecê-lo. A esses vís cabotinos sem valor moral, proncipalmente, que nos antecederam, pensando mal e escrevendo pior, um cordial adeus de mão fechada. Foram um péssimo exemplo.
          Sou contra o passado para, por um falso respeito, transformá-lo em rito intangível. Temos o direito de criticá-lo. Temos o direito de nos rebelar contra ele. Só não temos o direito de desconhecê-lo. E este conhecimento do passado só se pode fazer culturalmente e através dos bons escritores, abandonados pela geração. Daqueles escritores, tipo clássico. Clássicos porque, em formas superiores de bem exprimir-se, souberam focar o seu tempo, as suas tendências, os homens, os costumes, o bom e o mau que lhes passou pelos olhos, poderosos refletores testemunhais da vida que se foi. Como insuperáveis estetas, fixaram todos esses momentos, E o prêmio de tanta arte foi uma justa imortalidade. E por isso, resistem. Isto é um clássico: — um que resiste. Resistência que o tempo terrível e avassalador não consegue vencer. Que pôde o tempo contra Homero, a Bíblia, Cervantes? Pois esta inabalável resistência é que os tornou clássicos. Há uma observação certeira de Azorin que quero, aqui, por mim endossada, transcrever: “En el fondo, el problema de los clasicos es el mismo problema de la vida total de las sociedades, con sus instituciones y modalidades políticas.” Para mim, mais do que um valor estático de estética literária, vejo aflorar no clássico a imensa valia dinâmica de um documento não só histórico, mas, e principalmente, humano e psicológico. O clássico vale por um documento e um repositório de quanto vem ansiando a humanidade nas suas marchas e contra-marchas. Não acredito seja ele um manancial de lições, especialmente literárias. Aqui paro, para bem frisar, com a maior força de expressão que me seja possível: Não comprendo que o clássico seja um eterno motivo literário. Porisso, não posso comprender escritores dos nossos dias se plasmando, numa irritante e desprezível cópia servil, sobre os estilos dos velhos ecritores. Digo mais claro: não posso admitir, por exemplo, na língua portuguesa, reproduções do estilo de Vieira e outras sumidades da língua. E tão errado anda quem assim pratica, como quem, com a insânia modernista, anda a escrever segundo a fala — fala errada, pobre, mesquinha e vil — do pobre povo. Nunca, na verdadeira literatura, se escreveu consoante este falar. O pobre povo, a classe dos que não se educaram somente porque... porque, ora... porque não teve meios... porque é classe pobre... não pode nem deve ser imitada. Um escritor russo na Inglaterra, estudando Lenine pelo estilo, concluiu que esse revolucionário tinha um modo de escrever tão escorreito e correto que há de ficar clássico na língua russa. É que não se pode imitar o pior. Uma justa organização social deverá elevar o nível mental e social do pobre povo, fazendo-o escrever e falar bem. E jamais, haveremos de, por uma cretiníssima mística revolucionária, ou por uma visão estrábica da literatura, baixar até a miséria e à fala desengonçada e cassange do pobre povo... Errados estão estes senhores, imitadores de mau modelo, como aqueles outros, mata-borrões de clássicos. O que menos se deve procurar num clássico é o estudo de formas literárias para imitá-las: o seu grande valor deles, é um valor histórico, documentário, humano e psicológico, de altas conclusões filosóficas e políticas, sem que, entanto, para o estudo da evolução de uma língua, se despreze o seu aspecto literário. Entre clássicos e modernos interpõe-se uma natural evolução gramatical e estilística, e uma naturalíssima evolução de temas e de assuntos. E aqui bate a nota das diferenças: os temas diferem, como a vida, e trazem para o estilo um novo carregamento de palavras, de frases vivas que devem figurar no acervo da lingua renovada, acrescida e evolvida.
          Contra a servil imitação puramente literária do clássico está a moderna insurreição daqueles que não poderiam ficar imóveis à sua contemplação. Mas caminham os modernos em extremo oposto: abandonaram, desprezaram, relegaram os velhos e bons clássicos. Destruir, eliminar, está bem, o velho inútil que teima em perpetuar a sua esterilidade. Mas fazer ruir, como vândalos, o testemunho do passado, pelo qual este se nos liga, sem o qual é impossível conhecê-lo e até conhecermos-nos, numa renegação estúpida, é demência... Delírio é, de fato, o desses literatos que, no Brasil especialmente, nestes últimos vinte anos, pretenderam em palmar o leme da inteligência, erguendo-se contra o bom velho clássico. Mas parece que já estão bem castigados. São verdadeiros “muertos vivos”, desorados a plena juventude. Poucos ficarão. E, esses poucos, serão talvez amostras de sólida incultura e estrambótica falta de gosto e de talento. Produziram inviavelmente. É que lhes faltou estudo e caráter intelectual. Que longe andou, no Brasil, esta geração chamada modernista, daquela tão rudemente atacada que, de verdade, teve os seus graves defeitos, — escrava da forma, fascinada pelas imitações clássicas — mas teve a honestidade dos estudos sérios! Refiro-me àquela plêiade que, especialmente, se congregou nos anos iniciais da Academia de Letras, com Rui, Nabuco, Euclides, Machado, Laet, João Ribeiro e outros. (É verdade que, posteriormente, nela se aninharam tipos de pouco ou nenhum valor, entre os quais se deve destacar a desse falsário, o sr. Gustavo Barroso).
          Mas, se quisermos renovar-nos temos de começar pelos alicerces. Estes, estão no passado. E o passado deve ser reestudado para conhecimento, como fonte, Muitas vezes até ele pode instruir pela sua face negativa. Dizem que um grande político aconselhava o estudo da Comuna de 70 para se aprender como não se deve fazer uma revolução. O estudo do passado está nos velhos clássicos. E estes nos fazem falta.
          Mas, como fazer-se a leitura clássica? Aqui, o cordial da questão. That is question. Para todas as interrogações, sempre a frase do solilóquio tenebroso da boca pressága de Hamlet. Lê-los, aos clássicos, no original, coisa impossível ao homem mais culto. Então, temos de recorrer às traduções, e, principalmente àquelas que se consagraram pela sua fidelidade e por outras virtudes, como sejam, clareza, estilo, etc.
          Não podemos ler, entanto, do velho ou do novo, o que está traduzido recentemente no Brasil. O bas-fond dos dicionários ainda não registra o adjetivo que deveria qualificar os tradutores e as traduções feitas nestes últimos anos entre nós. Qualquer palavrão, daqueles, tipo estampido, que jogam para longe com o melhor da honra, ainda não serviria para imprimir sobre tais tradutores e tais editores a marca do desprezo e da justa infâmia. Uma polícia literária — que já se faz mister, com urgência, entre nós — deveria mandar incinerar o montão desses desprestígios intelectuais e riscar da nossa vida mental esses livros e esses autores, além de outras penas que poderiam caber aos bárbaros comerciantes de livros que, por justiça, deveriam ir às galés.
          Diante, pois, da impossibilidade de ler-se o velho em novas traduções, impõe-se o aproveitamento dos antigos textos. Este é fenômeno que se observa nos grandes centros culturais do mundo. Primeiro, a faina das reedições da básica produção cultural da humanidade. Depois, em textos nus ou anotados, de excelentes edições críticas, o reaproveitamento de velhas e magníficas traduções, cuidadosamente revistas e modernizadas. Exemplifiquemos: clássicos nacionais e estrangeiros são ressuscitados e reeditados em língua inglesa. nessas duas estupendas publicações: A Modern Library Giant, New York e a Everyman’s Library e estas últimas já vão por mil e tantos volumes. Primores editoriais, gráfica, tipográfica, literária e criticamente, são os clássicos franceses e internacionais da Bibliothèque de La Pléiade, editados pela Librairie Gallimard, Paris. Ainda em França, além destes, há a vasta biblioteca dos clássicos Garnier. Os italianos se saem com aquela finura florentina das edições clássicas de A. Mondadori. Em Espanha, antes da catastrófica vitória de Franco, o cuidado retilíneo das edições de Aguilar, e as mais antigas, de Perlado. Edições dc grande alcance fazem-se, embora sem luxo, no México, com a Editorial Seneca, no Chile, com a Tor, e na Argentina, com a Espasa e o trabalho formidável da Losada. Em Portugal, reedições bem cuidadas e populares, são as da Livraria Sá da Costa.
          E o que se verifica nestas ultra-modernas e cuidadosas edições? A honestidade mais intransigente dirige a orientação dos seus organizadores. Antigas traduções clássicas estão sendo reestampadas. A Gallimard reedita Plutarco na velha tradução — 1559 — de Amyot e, entre as muitas, antigas e modernas, preferiu a tradução francesa do Quixote, a cargo de Oudoul — 1615 — cuidadosamente revista por Jean Cassou. A Losada, de Buenos Aires, reedita Kant — A Crítica da Razão Pura — na tradução, de 1883, do cubano José del Perojo. O Plutarco da sua edição é a tradução de Antonio Rans Romanillos, de 1821 e as Tragédias de Sófocles se reeditam na versão de 1880, de Fernando Segundo Brieva Salvatierra.
          Anos e anos passei-os na pesquisa bibliográfica de diferentes matérias. Entre as por mim aprofundadas, está a das velhas traduções boas e clássicas da língua. Um dia contarei o meu trabalho e publicarei, entre outras, esta bibliografia. E ao encetar estas edições recorri a elas. São primores que desentranho ao arquivo do esquecimento. Se têm contra si uma língua velha — dona Carolina demonstrou, aliás, que no século XII as palavras mais comuns da nossa língua já estavam formadas e em uso — é perfeitamente inteligível e sempre, além de saborosa, documental, tendo a seu favor o ativo formidável da fidelidade, do cuidado e da clareza. Naturalmente precisam de uma revisão, que não lhes sacrifique o texto, que não lhes prejudique a língua, mesmo prisca. Em tradução exige-se, antes de tudo e sobretudo, fidelidade e mais fidelidade, e esta, têm-na as velhas versões no seu maior grau. Como apurar isto? Facilmente: confrontando os textos. (Em geral, essas traduções vêm acompanhadas do texto original).
          Ademais, se a nossa época está dominada pela preocupação de ordem científica, — chegando aos exageros do cientificismo, — os séculos passados foram dominados pela preocupação literária e histórica. Com muito acerto dizia Lord Lytton: “Das letras, os antigos; das ciências, os modernos”. Muito ao justo vem a citação, eis que, de fato, sem as preocupações de ordem científica que nos absorvem, eram os velhos mais cuidosos da expressão literal e literária do seu pensamento no que diz respeito à propriedade, ajuste das palavras e meneio das frases. Pode-se mesmo dizer que a língua se formou com eles. Intelectualmente, era essa a sua função. E sobre o conhecimento do próprio idioma, ainda se agregava o conhecimento da língua e da literatura ditas clássicas, especialmente da grega, latina e hebraica. Com efeito, eram eles apuradamente sabidos nesses idiomas, quando não mesmo eméritos latinistas, helenistas e hebraizantes. Montanhas de documentos literários, em escritos originais, traduções, versões, textos, dicionários, léxicos, gramáticas, nos ficaram. Tinham lazeres e propósitos nessas humanidades e, com o estudo das matemáticas, da teologia e da filosofia, eram essas, quase exclusivamente, as suas atividades. Daí, as linhas perfeitas dos seus escritos, que se refletem, também, nas suas ótimas traduções. As recentes descobertas históricas que podem modificar os antigos textos, não os modificam de tal modo que as velhas traduções fiquem inaproveitadas.
          Em contraposição formal a este honesto proceder tivemos, nos recentes tradutores, analfabetos até a medula dos ossos, o aviltamento da língua, o rebaixamento criminoso do sentido, o desfazimento do conteúdo ideológico, a ignorância do idioma a traduzir e a fúria mercantil dos editores. Levados de todas estas razões foi que resolvemos reaproveitar os velhos textos em velhas traduções... Perdoe-se-nos o irônico recuo...
          Já nestas nossas edições demos um pano de amostra do quanto valem as traduções reaproveitadas. Todas, primorosas. E aqui te damos, leitor, esta outra, na língua fiel e cristalina do gramático e historiador da nossa literatura, de Francisco Sotero dos Reis, dos Comentários de Cesar.* É mais uma jóia que engastamos na nossa série clássica “Os Mestres do Pensamento”.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Dois Trechos Memoráveis do Sertillanges

-O trabalhador que no esforço novo encontra a recompensa do esforço antigo, que dele faz o
seu tesouro, é de ordinário um apaixonado; não há meio de o desapegar do que assim é
consagrado pelo sacrifício. O seu andar, na aparência mais lento, dispõe de recursos para ir
por diante. Pobre tartaruga laboriosa, não perde o tempo em ninharias, porfia, e ao fim de
poucos anos, ultrapassa a lebre indolente, cuja marcha desimpedida lhe causava inveja,
enquanto se arrastava lentamente.
****
-A humanidade cristã compõe-se de personalidades diversas, e nenhuma destas pode abdicar
daquela sem empobrecer o grupo e privar o eterno Cristo de parte do seu reino. Jesus Cristo
reina pelo seu desdobramento. A vida de qualquer dos seus <<membros>> é um instante
qualificado da sua duração; qualquer caso humano e cristão é um caso incomunicável, único e,
por conseguinte, necessário, da extensão do <<corpo espiritual>>. Se sois porta-luz, não
escondais, debaixo do alqueire, o brilho pequeno ou grande que de vós se espera na casa do
Pai de família. Amai a verdade e os seus frutos de vida, para bem vosso e dos outros;
consagrai ao estudo e à sua utilização o principal do vosso tempo e do vosso coração.
Todos os caminhos, excepto um, são maus para vós, visto que todos se apartam da direcção
onde se espera e se requer a vossa acção. Não sejais infiel a Deus, nem a vossos irmãos, nem
a vós próprios, rejeitando um apelo sagrado.

Platão, Carta VI

"Esta carta vós deveis ler; o melhor seria que lessem juntos, caso contrário ao menos dois; tão em comunhão quanto possível. Deveis reconhecê-la como um contrato e uma lei obrigatória, pois ela é justa. E deveis jurá-la com uma sobriedade não desprovida de música, assim como uma uma alegria que é irmã da sobriedade. Deveis jurá-la pelo Deus que é o guia em todas as coisas, presentes e futuras, e pelo nobre pai do guia e autor; o qual devemos ver em sua clareza, se formos verdadeiramente filósofos, na medida em que é possível para homens que são abençoados."   

Machado de Assis Sobre Típico Intelectual Brasileiro

"ouve a Tupã e escuta a Momo
sem controversia,
e tanto adora o estudo, como
adora a inércia"

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Bukowski Sobre as Mulheres:

"Estavam transformando nossa graduação em uma maldita comédia. A banda tocou o hino do colégio. Ficamos alinhados, cada um esperando sua hora de marchar pelo palco. Na platéia estavam nossos pais e amigos.
- Estou quase vomitando - disse um dos caras.
- Saímos de uma merda para nos metermos em outra - disse outro.
As garotas pareciam encarar as coisas com a maior seriedade. Era por isso que não se podia confiar nelas. Pareciam compactuar com as coisas erradas. Elas e o colégio pareciam cantar em uníssolo o mesmo hino."

Análise do Tema da Analogia - Mário Ferreira dos Santos

Os que defendem a analogia no ser, alegam a seu favor que o ser finito é tão dissemelhante do infinito, que entre o ser do homem e do de Deus, há apenas uma analogia de proporção.
Não é de admirar que se afirme haver uma incomensu-rabilidade entre nós e Deus, pois há incomensurabilidade até entre o que se dá aqui, como entre o diâmetro e a circunferência, e nas proporções dos números de ouro dos pita-góricos.
O infinito não tem medida; o infinito é medida qualitativa do finito.
Essas medidas não são unívocas, mas análogas (de participação), afirmam os que defendem a analogia do ser.
Na analogia, há a participação do analogado pelos ana-logantes, e tal participação indicia a identificação mais remota ou próxima, segundo o nosso esquema.
Na ordem noética, a participação chama-se analogia; na ordem ontológica, a analogia chama-se participação.
Os esquemas noéticos, que, por abstracção, construímos, participam dos esquemas concretos dos factos, que os captamos apenas como quididades noéticas, reduzidas a esquemas eidético-noéticos. Nesta maçã, por sua vez, o seu esquema concreto participa do esquema essencial da maçã, pois ela não esgota as possibilidades desta, mas apenas um sector dessas possibilidades, da mesma forma que esses três livros não esgotam, enquanto três, no esquema concreto de três, aqui e agora, hic et mine, as possibilidades concretas do esquema essencial três, que é um pensamento do ser, e que pode, concretamente, surgir em três cadeiras, três mesas, etc. Portanto, o esquema essencial (o arithmós, no sentido pitagórico, já por nós estudado em "Teoria do Conhecimento") é do ser, subsistente no ser, e um poder do ser, cuja existen-cialização (para empregarmos uma expressão bem avice-niana) se faz por participação. Esses livros são três, o três há neles, concretamente, não está neles, porque o arithmós três, neles concrecionado, é participante de três como arithmós essencial (esquema essencial).
Portanto, há nesses três livros uma analogia com três, e uma analogia com três mesas, três cadeiras. E são eles análogos porque participam do mesmo esquema três; por isso, na ordem ontológica, a analogia chama-se participação.
Ora, todo o ente finito participa do Ser, esse parte ca-perem, de São Tomás, pois o Ser Supremo inclui todas as perfeições em sua mais elevada e acabada realização; ou seja, segundo suas completas possibilidades, pois tudo quanto há, há no Ser, e como nada se dá fora dele, éle contém todas, as perfeições, de que uma perfeição parcial, este ente finito, hic et mine, é apenas participante. Por isso, entre o ser finito, ou melhor entre o ser criado e o Ser Supremo, criador, há apenas uma analogia de proporção. Cada ente reflecte parte dessa perfeição, na sua perfeição, no seu acto, pois, como sabemos, na escolástica, o acto é a perfeição da potência; o que é acto é a actualização de uma aptidão, que, enquanto tal, é imperfeita.
Agora, se considerarmos o conteúdo conceituai, veremos que há nele uma analogia, quando aplicada a vários entes. Se considero a cadeira um "móvel composto de assento, encosto e pernas, com a função de permitir que uma pessoa nela se assente", entre esta cadeira e aquela, o conceito, que nelas é comum, porque nelas considera apenas aquelas notas que têm em comum, é unívoco. Ou em outras palavras, há univocidade conceituai entre essas duas cadeiras. Nelas, desprezamos tudo o mais que as pode diferenciar, como o ser esta de madeira, aquela de metal, etc. Há, deste modo, uma certa identidade entre esses objectos, identidade parcial, pois desconsidero o que nelas é heterogéneo.
Mas, o conceito de ser apresenta uma particularidade que o diferencia dos outros. Tudo quanto é heterogéneo é ainda ser, e não apenas o que há de homogéneo, o que não se verificava no exemplo anterior. Não há, aí, portanto, identidade no que expressa, porque se considerarmos que ser apenas expressa uma parte dos objectos (isto é, se admitimos que o conceito de ser tem uma representação parcial), as notas heterogéneas seriam extrínsecas ao ser, e neste caso seriam idênticas ao não-ser, o que nos colocaria num verdadeiro contra-senso.
Portanto, concluem os tomistas, o conceito de ser é ape-nos proporcional entre os seres, não é unívoco, mas apenas análogo.
Mostram-nos os tomistas que todo conceito unívoco pode ser expresso por um termo abstracto e por um termo concreto. O termo abstracto expressa uma abstracção "formal", por ex.: dureza. Expressa êle certa forma ou qualidade, isolada do seu sujeito (cxprimit subjectum sed non to-tum). Mas, quando digo que esta casa é verde, considero-a dotada da côr verde. Indica o sujeito integralmente (a casa), mas qualifica-o por uma de suas determinações (ex-prímit subjectum totum, sed non totaliter = expressa todo o objecto, não porém totalmente). É o termo concreto. O termo concreto expressa o próprio sujeito afectado de uma determinação particular. É o resultado de uma abstracção "total", isto é, efectuada sobre o todo. Quando digo "negro", refiro-me a um certo sujeito dotado da "negrura".
Posso predicar o termo concreto do sujeito, mas o termo abstracto não pode ser predicado do sujeito. Posso dizer que este homem é negro, não posso dizer porém que êle é negrura, pois não posso considerar a parte como idêntica ao todo.
O termo ser empregado expressa sempre o sujeito totalmente e sob todos os aspectos e relações (exprimit sub-jectu totum et totaliter — expressa todo e totalmente o sujeito). O ser, por abstracto que se queira tornar, não exclui, não separa, não isola um aspecto parcial do sujeito; desta forma, no ser, a abstracção total e a abstracção formal se equivalem. Se digo que este livro existe ou que este livro é sua existência, é indiferente, porque existe e existência são equivalentes.
Fazem deste modo os tomistas questão de salientar que o ser não é nunca um aspecto, um elemento, uma determinação dissociável, mesmo quando considerado logicamente, dos outros, pois quaisquer das outras determinações são intrínseca e formalmente o ser.
Esse o aspecto misterioso do real, unidade na diversidade e diversidade na unidade. Quando conceptualizamos a ideia de ser, temos uma ideia, mas confusa (de confundere, de fundir com, misturada), por isso analógica do ser, que na sua essência nos escapa; isto é, temos um sabor quiditativo do ser não quidditative, exaustivo até à sua essência, o que fronèticamente se o tivéssemos, por fusão com êle, nos poria em estado de beatitude, o que pelos tomistas, nos é negado nesta vida" ("Ontologia e Cosmologia" págs. 75-85).
Um mais aprofundado estudo da gnosiologia e da noolo-gia, do funcionar do nosso conhecimento e da mente humana, mostra-nos que há validez nos esquemas noéticos que construímos, pois, desde que sejam rigorosamente estructu-rados, correspondem a fundamentos reais.
Se prestar-se atenção a conceituação lógica, já escorreita da capa experimental, purificando-a do que é da nossa pragmática, para considerar o conceito na sua estructura ei-dético-noética, formal portanto, ver-se-á que os conceitos se entrosam em nexos rigorosos, que não permitem entre eles, enquanto tais,outra distinção que a meramente real-formal, e não real-física. O mesmo nexo unitivo que, ontologicamente, sentimos dar-se no ser que, em sua essência, é um, e não múltiplo, revela-se aqui, analogando as formalidades uma às outras, como os seres se analogam existencialmente uns aos outros.
Entre aquela estrela e nós, há alguma coisa em comum, sentia-o Goethe, porque, do contrário, como poderíamos conhecê-la de qualquer modo? Entre os seres há sempre uma relação de semelhança e de diferença, porque do contrário teríamos de aceitar um abismo entre os seres, o que nos colocaria, de chofre, nas aporias do pluralismo.
O diferente absoluto, que estabelecemos no estudo da analogia, refere-se à haecceitas, ao arithmós individual na linguagem pitagórica, à unicidade da singularidade que, como tal, não se confunde com outra, pois é apenas ela mesma, numericamente distinta, como também o é ônticamente distinta. Mas, esse absoluto não é algo que se separa fisicamente do ser, pois o que individualiza, singulariza, e dá unicidade ao ente não é um ser fora do ser, mas no ser. É apenas o arithmós, o conjunto, o arithmós plethos de uma unidade, que é o arithmós tonos, o arithmós tensão, que o distingue de tudo o mais. O que um homem, como existente, é, em sua unicidade, é o arithmós, que é, que é só êle (singularidade), que constitui a sua forma individual. Mas a com-ponência desse ser é do ser.
Assim como a matemática nos mostra que são possíveis combinações potencialmente infinitas, o arithmós individual é próprio de cada um, sem necessidade de afirmar uma identidade com outro quanto ao conjunto (plethós) de uma unidade, que se identifica no ser, por ser apenas ser (1). Consequentemente, entre todas as coisas há uma analogia mais próxima ou mais remota, pois o indivíduo, quando se unívoca na espécie e esta no género, conserva a sua diferença individual ou específica.
A participação por hierarquia formal nos permite compreender desse modo a via symbolica, o itinerarium mysti-cum que podemos seguir, pois, partindo das qíiididades que compõem o arithmós plethós de um ser (há aqui um arithmós tomado no conjunto das qíiididades), podemos ver que Considerm-se, ainda, como virtudes anexas da prudência as seguintes: a eubulia, o hábito" recto de consultar; a synesis, o hábito recto de julgar segundo regras comuns; a gnome, o hábito recto de julgar segundo os princípios superiores, sobretudo jurídicos.

Voegelin em Hitler e os alemães


"Permiti-me informar-vos da reação a Hitler de um homem de qualidade, de reconhecida qualidade. Pode ser encontrada nos diários de Thomas Mann para os anos de 1933 e seguintes. Aqui, Mann fala das observações de Wasserman acerca de Max Planck:
'que estava fazendo relatos a Hitler concernentes às demissões de professores semitas e teve de ouvir uma resposta de 45 minutos, da qual retornou para casa completamente arrasado. Era como a fofoca de uma velha camponesa acerca de matemática - no nível de uma pessoa semi-analfabeta com idéias fixas, como nada que o famoso cientista jamais ouvira na vida. Dois mundos entraram encontato quando da ascensão estúpida e demagógica deste indivíduo ao poder: o conhecimento, a erudição, o pensamento rigoroso ouve a insolência de expectorações professorais, e se curva, afastando-se.'
Aí tendes a tragédia do caráter alemão. Quando essa ralé abjeta chega ao poder, terminou a cultura. Aí só se pode curvar-se e ir embora."